Hoje é dia de Portugal,
de Camões e das Comunidades Portuguesas. O Poeta, de cuja data de morte foi a
escolhida para celebrar a nação Portuguesa, termina a maior das suas obras com
uma emoção...
Sentimo-nos mais ou
menos confortáveis em expressar a maioria das nossas emoções, mesmo as
desagradáveis: podemos admitir estar tristes, zangados e até com medo... mas e invejosos?
Quantos de nós já confessámos a nossa inveja a outros, ou até a nós mesmos? Com
que frequência ouvimos alguém falar acerca da intensa inveja que tem face a
algo? Pois é... a inveja parece não vir sozinha. Parece haver, quase sempre,
embaraço a acompanhá-la, vergonha e até mesmo culpa.
Há quem diga que terminar
Os Lusíadas com a enveja foi uma escolha de Camões,
assumindo que esta é uma emoção que nos define enquanto povo. Será?!? E se
assim for, será assim tão mau?
Querer qualquer coisa
que outra pessoa tem, mas cujo acesso é limitado, e que, imaginamos, nos trará
felicidade e realização pessoal, confere ao outro uma certa vantagem ou mesmo
poder. Quando sentimos inveja, imaginamos que a vida dos outros é mais feliz,
satisfatória, o que torna esta emoção numa espécie de elogio ao outro. Um “elogio”
que muitas vezes nos magoa no mais profundo de nós. Fantasiamos acerca de ter
aquilo que sentimos que nos falta, quando, muitas vezes, o que nos falta é admiração,
apreço, uma sensação muito semelhante à que temos para com a pessoa que tem o
bem ou carcaterística que desejamos, mas que muitas vezes não temos para
connosco. E se estarmos aleatoriamente demasiado expostos ao sucesso dos outros
nos pode apavorar ao ponto de nos sentirmos sem capacidade de agir, e, inconscientemente,
nos impedir de colocar qualquer plano em prática, será esta, efectivamente, uma
emoção que nos define?
A inveja é muitas vezes
descrita como uma emoção mesquinha, egoísta, e, como vimos, muitas vezes
acompanhada de sofrimento... mas, se é suposto permitirmo-nos sentir todas as
emoções, por que é que invejamos? Qual a função da inveja no nosso auto
conhecimento?
Se nos permitirmos despir
a culpa e o embaraço da inveja, podemos olhá-la como uma pista acerca daquilo
que podemos fazer a seguir, como uma espécie de chamamento a que devemos estar
atentos, uma vez que nos traz, de forma disfarçada, mensagens enviadas por partes
confusas, mas importantes, das nossas personalidades, sobre o que devemos fazer
com as nossas vidas.
Quando invejamos, podemos
sentir-nos tristes com o sucesso do outro, ou com o que ele tem, mas também,
simultaneamente, sentirmo-nos nós próprios secretamente inferiores. Sem as
mensagens que a inveja nos vai enviando regularmente, ser-nos-ia difícil saber
o que queremos ser: cada pessoa que invejamos tem uma peça daquilo com que
desejamos construir o nosso futuro. É como
se as pistas que a inveja nos dá quando sabemos que um colega nosso está numa
posição de sucesso, quando a nossa melhor amiga foi mãe, quando o nosso irmão
abdicou da vida “confortável” que tinha e decidiu partir numa missão
humanitária, nos permitissem ir construindo um puzzle com a imagem do nosso
verdadeiro Eu.
Em vez de tentarmos
esconder, disfarçar e até mesmo reprimir a nossa inveja, por que não questionarmo-nos
calmamente acerca de tudo ou todos quantos invejamos: “O que é que posso
aprender com isto?”?
Se nos dispusermos a
estudar a nossa inveja criando, por exemplo, um “diário da inveja” onde vamos
apontando as situações e pessoas que invejamos, poderemos aceder às partes do
nosso futuro Eu que procuram aparecer. Poderá ser libertador perceber que,
apesar de começarmos a invejar certas pessoas na sua totalidade, se analisarmos
calmamente as suas vidas, tomamos consciência de que, afinal, apenas uma
pequena parte do que fizeram realmente ressoa em nós e é orientador dos nossos
próprios próximos passos. Ou seja, esquecemos-nos frequentemente que aquilo que
admiramos e desejamos não pertence exclusivamente a uma vida específica, e que
pode ser alcançado em doses mais pequenas, ou mesmo menos intensas, mas ainda
assim muito reais, que abrem a possibilidade de versões mais pequenas, mais
práticas e até adaptáveis, e, principalmente, mais realistas, das vidas que
queríamos ter.
Os nossos sentimentos de
inveja tentam dizer-nos alguma coisa... e nós devíamos ouvi-los.
Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.
(Luiz Vaz de Camões, in Os Lusíadas)
Ana Luísa Oliveira
escreve de acordo com a antiga ortografia.
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