Hoje
decidi reflectir sobre uma temática que pode parecer mais relacionada com a
filosofia do que propriamente com a psicologia. Parece-me no entanto ser algo
demasiado abrangente e com grandes consequências para a forma como vivemos o
dia-a-dia e para o nosso bem-estar, para não o abordar.
A
forma como as pessoas vivem e sentem o “Ter” e o “Ser” tem vindo a sofrer
alterações ao longo do tempo. No entanto, hoje gostaria de me focar um pouco
mais no agora, século 21, ano 2016, Portugal.
Todos
nós sabemos e sentimos que vivemos numa sociedade competitiva e consumista,
onde ter uma licenciatura, ter um carro, ter uma casa, ter um bom relógio, ter
o último modelo de telemóvel, ter, ter, ter... tornou-se num foco principal.
Contudo, sendo este o foco, onde está a importância do ser?
Um
exercício simples: quando estamos num grupo de amigos e aparecem pessoas novas,
como é que nos apresentamos? Sou o Joaquim e sou motorista. Ou, Sou a Maria e
sou professora. Mas afinal somos a nossa profissão? Somos apenas a nossa parte
profissional? E que tal, Sou a Júlia e acredito na solidariedade? Ou, Sou o
José e sou divertido e adoro anedotas? Aquilo que fazemos para ganhar a vida
não é o que somos na vida. Trabalhamos para ganhar dinheiro e ter uma melhor
qualidade de vida, mas a qualidade de vida não se obtém apenas por se ter
dinheiro, fama ou poder, mas sim nas relações de afecto, na disponibilidade para
os outros, na solidariedade, na cooperação, na curiosidade e na partilha.
Por
um lado, há o que somos como pessoas: os nossos valores, os nossos interesses,
os nossos sonhos. Sermos o que somos hoje e desejarmos ir construindo a nossa
pessoa, acreditarmos que o “Ser” é um processo para a vida. O "Ser" é
a consciência social, a liberdade, a igualdade, a justiça, a fraternidade, a solidariedade,
a cultura, a preocupação ambiental, a tolerância, a aceitação e a preocupação
com o outro.
Por
outro lado há a licenciatura que tirámos, a formação que fizemos, o emprego que
temos, o carro que comprámos, as férias que fizemos, as roupas que comprámos...
E
se pensarmos sobre o que nos faz sentir realmente melhor? O que nos faz sentir
mais cheios por dentro? Será que é saber que temos um carro melhor que o nosso
vizinho? Ou sentir satisfação na pessoa que criámos em nós? É verdade que quem
vai às compras, no intuito de ter prazer, com certeza que o encontra, mas por
quanto tempo? Esse consumismo pode reduzir uma tensão interna, mas dá-nos uma
sensação de prazer fugaz, voltando uma nova necessidade e consequente impulso
consumista. Podemos sentir que temos mais coisas que os outros, ou as mesmas e
assim não nos sentimos inferiores. Podemos ir às compras e retirar prazer disso
no momento... Mas como retirar satisfação contínua simplesmente por sermos o
que somos? E mesmo que os outros tenham o telemóvel topo de gama, porque não me
posso sentir satisfeito com o que tenho? O consumismo serve para muitas pessoas
como um analgésico para aliviar (momentaneamente) o mal-estar psicológico, a
sensação de vazio e de solidão.
A
grande diferença entre o “Ser” e o “Ter” é uma sociedade estar centrada nas
pessoas ou estar centrada nas coisas. E quando está centrada nas coisas, o foco
está no dinheiro, no poder e na fama e, tendo em conta os números de audiência dos
reality shows e o número de candidatos para esses programas, creio que podemos
dizer que a fama é algo muito importante neste momento, para uma grande maioria
de pessoas. O "Ter" é aparência, é efemeridade, é indiferença e
individualidade, é intolerância, é solidão. O "Ter" esgota-se nele
próprio, alimenta-se dele, exigindo sempre mais "Ter". Esta sociedade
de consumo empurra-nos para valorizarmos cada vez mais o aspecto material e os
meios de comunicação estimulam esse consumismo com publicidade cada vez mais
agressiva. Os valores estão-se a inverter, e o “Ter” tem tido um foco cada vez
maior por parte da população.
E direccionando este texto para a psicologia e o bem-estar das pessoas, como é que
uma pessoa se sente bem ao estar constantemente com um foco direccionado para ter
mais e mais e mais, sem alimentar os valores? Mas ao mesmo tempo como é que uma
pessoa se pode sentir bem, não estando de acordo e não partilhando estes valores
centrados nas coisas e no “Ter”, como uma grande parte da sociedade está?
Com
este texto não quero de todo partilhar a ideia que o bom é vivermos com pouca
coisa e não fazermos compras, nem ter um carro, nem ir de férias. Nada disso. Um
desejo quase universal é ter uma vida tranquila, confortável, segura e sem
preocupações financeiras. E naturalmente, é necessário termos dinheiro para
termos acesso à moradia, saúde, alimentação, estudo, segurança, conforto,
transporte, lazer. O foco pode estar orientado para a pessoa e para as pessoas,
ou para as coisas, e neste último caso é perigoso por nos estarmos a tornar
alienados do que nos envolve, do que está ao nosso lado e na construção da
sociedade, que, ao fim e ao cabo, são simplesmente as pessoas.
É importante reflectirmos
e apercebermo-nos que o nosso valor como pessoas não tem que estar associado ao
que possuímos, à fama, ao poder ou à riqueza. Essa necessidade e essa
consequente procura desmedida traz-nos ansiedade, stress, problemas sociais e
dificuldades de relacionamentos, não nos aumenta o bem-estar nem a qualidade de
vida.
"Se
a preocupação está em ter, ter, ter, uma pessoa cada vez se preocupará menos em
ser, ser e ser". – José Saramago
Por decisão pessoal, a autora do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.
Por decisão pessoal, a autora do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.
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