terça-feira, 26 de abril de 2016

A diferença entre Ter e Ser

Hoje decidi reflectir sobre uma temática que pode parecer mais relacionada com a filosofia do que propriamente com a psicologia. Parece-me no entanto ser algo demasiado abrangente e com grandes consequências para a forma como vivemos o dia-a-dia e para o nosso bem-estar, para não o abordar.
A forma como as pessoas vivem e sentem o “Ter” e o “Ser” tem vindo a sofrer alterações ao longo do tempo. No entanto, hoje gostaria de me focar um pouco mais no agora, século 21, ano 2016, Portugal.

Todos nós sabemos e sentimos que vivemos numa sociedade competitiva e consumista, onde ter uma licenciatura, ter um carro, ter uma casa, ter um bom relógio, ter o último modelo de telemóvel, ter, ter, ter... tornou-se num foco principal. Contudo, sendo este o foco, onde está a importância do ser?
Um exercício simples: quando estamos num grupo de amigos e aparecem pessoas novas, como é que nos apresentamos? Sou o Joaquim e sou motorista. Ou, Sou a Maria e sou professora. Mas afinal somos a nossa profissão? Somos apenas a nossa parte profissional? E que tal, Sou a Júlia e acredito na solidariedade? Ou, Sou o José e sou divertido e adoro anedotas? Aquilo que fazemos para ganhar a vida não é o que somos na vida. Trabalhamos para ganhar dinheiro e ter uma melhor qualidade de vida, mas a qualidade de vida não se obtém apenas por se ter dinheiro, fama ou poder, mas sim nas relações de afecto, na disponibilidade para os outros, na solidariedade, na cooperação, na curiosidade e na partilha.

Por um lado, há o que somos como pessoas: os nossos valores, os nossos interesses, os nossos sonhos. Sermos o que somos hoje e desejarmos ir construindo a nossa pessoa, acreditarmos que o “Ser” é um processo para a vida. O "Ser" é a consciência social, a liberdade, a igualdade, a justiça, a fraternidade, a solidariedade, a cultura, a preocupação ambiental, a tolerância, a aceitação e a preocupação com o outro.
Por outro lado há a licenciatura que tirámos, a formação que fizemos, o emprego que temos, o carro que comprámos, as férias que fizemos, as roupas que comprámos...

E se pensarmos sobre o que nos faz sentir realmente melhor? O que nos faz sentir mais cheios por dentro? Será que é saber que temos um carro melhor que o nosso vizinho? Ou sentir satisfação na pessoa que criámos em nós? É verdade que quem vai às compras, no intuito de ter prazer, com certeza que o encontra, mas por quanto tempo? Esse consumismo pode reduzir uma tensão interna, mas dá-nos uma sensação de prazer fugaz, voltando uma nova necessidade e consequente impulso consumista. Podemos sentir que temos mais coisas que os outros, ou as mesmas e assim não nos sentimos inferiores. Podemos ir às compras e retirar prazer disso no momento... Mas como retirar satisfação contínua simplesmente por sermos o que somos? E mesmo que os outros tenham o telemóvel topo de gama, porque não me posso sentir satisfeito com o que tenho? O consumismo serve para muitas pessoas como um analgésico para aliviar (momentaneamente) o mal-estar psicológico, a sensação de vazio e de solidão.
A grande diferença entre o “Ser” e o “Ter” é uma sociedade estar centrada nas pessoas ou estar centrada nas coisas. E quando está centrada nas coisas, o foco está no dinheiro, no poder e na fama e, tendo em conta os números de audiência dos reality shows e o número de candidatos para esses programas, creio que podemos dizer que a fama é algo muito importante neste momento, para uma grande maioria de pessoas. O "Ter" é aparência, é efemeridade, é indiferença e individualidade, é intolerância, é solidão. O "Ter" esgota-se nele próprio, alimenta-se dele, exigindo sempre mais "Ter". Esta sociedade de consumo empurra-nos para valorizarmos cada vez mais o aspecto material e os meios de comunicação estimulam esse consumismo com publicidade cada vez mais agressiva. Os valores estão-se a inverter, e o “Ter” tem tido um foco cada vez maior por parte da população.

E direccionando este texto para a psicologia e o bem-estar das pessoas, como é que uma pessoa se sente bem ao estar constantemente com um foco direccionado para ter mais e mais e mais, sem alimentar os valores? Mas ao mesmo tempo como é que uma pessoa se pode sentir bem, não estando de acordo e não partilhando estes valores centrados nas coisas e no “Ter”, como uma grande parte da sociedade está?

Com este texto não quero de todo partilhar a ideia que o bom é vivermos com pouca coisa e não fazermos compras, nem ter um carro, nem ir de férias. Nada disso. Um desejo quase universal é ter uma vida tranquila, confortável, segura e sem preocupações financeiras. E naturalmente, é necessário termos dinheiro para termos acesso à moradia, saúde, alimentação, estudo, segurança, conforto, transporte, lazer. O foco pode estar orientado para a pessoa e para as pessoas, ou para as coisas, e neste último caso é perigoso por nos estarmos a tornar alienados do que nos envolve, do que está ao nosso lado e na construção da sociedade, que, ao fim e ao cabo, são simplesmente as pessoas. 

É importante reflectirmos e apercebermo-nos que o nosso valor como pessoas não tem que estar associado ao que possuímos, à fama, ao poder ou à riqueza. Essa necessidade e essa consequente procura desmedida traz-nos ansiedade, stress, problemas sociais e dificuldades de relacionamentos, não nos aumenta o bem-estar nem a qualidade de vida.

"Se a preocupação está em ter, ter, ter, uma pessoa cada vez se preocupará menos em ser, ser e ser". – José Saramago

Por decisão pessoal, a autora do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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