quarta-feira, 28 de junho de 2017

A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe

Neste post antigo (https://claramente-psi.blogspot.pt/2016/05/envelhecimento-activo-e-humanitude.html), falei de envelhecimento activo e no conceito de Humanitude. Nesse artigo, utilizei um pequeno excerto de um livro que adorei ler e que facilmente me tocou e comoveu.

Hoje trago esse mesmo livro como sugestão de leitura - A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe.

A reedição deste romance, em Setembro do ano passado, abriu as celebrações dos 20 anos de carreira literária do escritor. Essa reedição conta com um prefácio do músico Caetano Veloso, no qual afirma: "Impacta-me que, exactamente quando da minha entrada na velhice, me chegue às mãos o trabalho de um jovem em que a contemplação do inexorável avanço da idade é a motivação de um exercício exuberante de escrita, onde a força da memória vocabular e emocional (força que define um verdadeiro escritor) surge luminosamente".


A máquina de fazer espanhóis valeu a Valter Hugo Mãe o Grande Prémio PT de Literatura - actual Grande Prémio Oceanos de Literatura.

“A Laura morreu, pegaram em mim e puseram-me no lar com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias. Foi o que fizeram. Depois, nessa mesma tarde, levaram o álbum porque achavam que ia servir apenas para que eu cultivasse a dor de perder a minha mulher. Depois, ainda nessa mesma tarde, trouxeram uma imagem da nossa senhora de Fátima e disseram que, com o tempo, eu haveria de ganhar um credo religioso, aprenderia a rezar e salvaria assim a minha alma. E um médico respondeu, a verdade é que ficam mais calmos. Achei que era esperado de mim um desespero motor. Digo motor para dizer de acção. Algo como partir coisas, revirar os móveis, agredir fisicamente os funcionários, os enfermeiros que me poderiam prender. O quarto pequeno é todo ele uma cela, a janela não abre e, se o vidro se partir, as grades de ferro antigas seguram as pessoas do lado de dentro do edifício. Pus-me a olhar para o chão, com ar de entregue. Estou entregue, pensei. Aos meus pés os dois sacos de roupa e uma enfermeira dizendo coisas simples, convencida de que a idade mental de um idoso é, de facto, igual à de uma criança. O choque de ser assim tratado é tremendo e, numa primeira fase, fica-se sem reacção. Se aquela enfermeira pudesse acabar com aquele sorriso, ao menos acabar com aquele sorriso, seria mais fácil para mim entender que os meus sentimentos valiam algo e que sofrer pela Laura não vinha de uma lonjura alienígena, não era uma estupidez e, menos ainda, vinha de um crime pela clausura e tudo. E ela sorria e eu poderia desejar-lhe, com tanto desprezo, o pior mal do mundo. Que lhe arrancassem os braços e as pernas, pensava eu, tirem-lhe os olhos e façam-na perder a voz e chamem-lhe cabra porque é o que ela merece. Senhor Silva, com esta mantinha vai ficar quentinho à noite, ainda aqui vai ter muitos sonhos bonitos, vai ver.”

E fica aqui a sugestão!
Boa leitura.

Por decisão pessoal, a autora do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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